domingo, julho 10, 2005

Lugar Estranho

Por baixo da fresta da porta da minha casa desliza um papel, dobrado em dois, sem envelope, escrito a lápis e a letra apressada, lê-se - 'Jantas comigo?'. A escolha que fizera por uma porta em madeira maciça e com uma fechadura pesada, fez-me dispensar o orifício por onde os olhos assustados ou ansiosos, naturalmente espreitam. Sem poder espreitar devolvi-te uma resposta. Sem poder ver a imagem que se esconde por trás desse convite, arrisquei. E na minha imaginação de menina criam-se já cenários brilhantes e coloridos, cheios de sorrisos e de um leve cheiro a chocolate. No mesmo papel, branco, escrevo - 'Sim' - em letras redondas e confusas. Dobro-o e faço-o deslizar pelo final da minha porta. De seguida recebo o mesmo papel onde se lia 'Jantas comigo?', desta vez a dizer 'Amanhã às 9, espero-te lá em baixo'. Não hesitei. Devolvi-o desta vez numa letra apressada e estreita - 'Lá estarei'.

A noite custa a passar. Fujo à tentação de pensar na invulgar possibilidade de estar a ser abordada por um estranho do mesmo modo que fujo à tentação de trazer à memória todas as pessoas que conheço bem ou que conheço, apenas, levemente. A noite não passa e o nascer do dia não chega mais. Invadem-me sentimentos contraditórios. Penso em desistir. Penso em avançar. Quando atinjo finalmente o sono, sonho com ligas e com camisolas de gola alta. 5 minutos e acordo novamente como se não estivesse estado sequer adormecida. Mas agora a escuridão já deu lugar a um sobreposto azul e chove lá fora e eu fico gelada cá dentro. Com frio e com medo do que há-de vir e são tantas e tão estranhas as ideias que ascendem à minha mente que facilmente me excito e aqueço e fico a ferver, e ensaio uma série de frases e faço de mim e dele, e pergunto e respondo e sinto-me preparada e frágil e sorrio e choro, feliz e com medo.

O dia rendeu muito pouco. Estive desconcentrada, não pensei em nada e pensei em tudo. Em cada 5 minutos que fazia para uma pausa para um café, ou para uma tosta mista, ou para um sumo de maçã, desfragmentava todas as frases feitas que anteriormente havia construído. E se me perguntavam alguma coisa respondia em sobressalto, e assustava-me com o toque do telefone, com o barulho da impressora e com o leve deslizar da caneta sobre o papel. Na minha cabeça ecoava a todo o momento a frase 'Lá estarei', e tremia ao mesmo tempo que o meu corpo vibrava. Quando saí do escritório e tive de enfrentar a claridade branca e forte que imperava lá fora, senti que toda a gente olhava para mim. E cinco pessoas que me olharam nos olhos pareceram-me uma multidão, todas elas podiam ter estado do outro lado da minha porta naquela estranha tarde, todas elas pareciam conhecer-me tão bem, e eu senti-me perdida, por não saber e não ver e não sentir rigorosamente nada em nenhuma delas.

Quando atravessei a porta do prédio descalcei os sapatos e subi as escadas o mais rápido que pude na esperança de um novo papel, de um nome, de uma pista, de um cancelar do convite por causa de uma reunião de última hora, mas não, por baixo da minha porta apenas os azulejos claros de sempre. Corri para a cozinha e acendi o esquentador, o corpo pedia-me um banho quente, e eu afoguei-me numa banheira de espuma e de sais e de cheiros e de dúvidas e de medos e de prazeres escondidos. Mantive-me imersa por 5 minutos, os 5 minutos que me permitiram afogar todos os gemidos e todos os gritos. Antes de sair ofereci-me uns segundos de água gelada para sair quente e quente pus uma música a tocar. Passeei o corpo nú por uma casa vazia, saboreei um gelado de chocolate ainda antes de me vestir e finalmente abri o armário.

Não perdi muito tempo com isso, até porque o meu relógio de parede dizia-me serem 8 horas e 35 minutos. Peguei numas calças de ganga clara, vesti uma camisa branca, pus um cinto e umas botas castanhas, optei por não levar relógio e achei por bem não levar nem fio, nem pulseiras, nem anéis, apenas um brinco de latão simples e discreto. Troquei à pressa as coisas de uma mala para outra, pus um pouco de Deep Red, ajeitei a camisa, passei a mão pelas calças, sem hesitar, saí.

Ainda faltavam 5 minutos para a hora marcada quando desci, e cá em baixo um papel branco, dobrado em dois e com a tua letra, que já reconheço, onde se podiam ler umas indicações simples para um lugar sem nome. Suspirei e atravessei a porta, caminhei com a sensação de que o bater dos saltos na calçada me faziam sentir, aquilo que não sou, alta, destemida e segura. Fui ao encontro de um restaurante vazio, entrei, como me tinhas pedido no último papel. A mesa do canto tinha apenas lugar para um, e sobre a toalha branca o meu prato preferido; por baixo da minha cadeira um girassol; baixinho ouvia-se a mesma música que tocava em minha casa, antes de eu sair, e dentro do meu guardanapo, a letra apressada pude ler 'Um beijo. Espero que gostes.'.

Soltei um sorriso rasgado, saboreei o prato, cheirei o girassol e acariciei várias vezes o pedaço de ti que havias deixado cravado no papel.

Amei-te desde o momento em que me ofereceste o vazio.

Catarina, Agosto de 2004

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