quarta-feira, fevereiro 21, 2007

Julieta

Julieta. – Dize-me: como vieste tu até aqui e para quê? Os muros do jardim são altos e difíceis de escalar; e este lugar será para ti a morte se algum dos meus parentes te descobre aqui.

Romeu. – Transpus estes muros com as leves asas do amor, porque não são as barreiras de pedra que o podem embaraçar; e o que o amor tem possibilidades de fazer ousa logo tentá-lo! Por isso mesmo, não são os teus parentes que me servirão de obstáculo.

Vi-a.
Na primeira fila, no canto direito da sala. Seguia a peça com o livro no colo e levantava os olhos para o palco, sempre que uma passagem preferida ia ser proclamada.

Conhecia-a.
Sentava-se sempre na primeira fila, quando andávamos juntas, nos tempos de liceu. Sempre se bastou a si e às suas coisas, aos seus livros, aos seus cadernos, aos seus poemas – entretinha-se, sozinha e sozinha sempre me pareceu feliz. Nos intervalos, sentava-se no chão com os pés para o Mundo e sublinhava coloridamente o livro que segurava no regaço. Vi-a sorrir e chorar às passagens. Emocionava-se com as histórias, com os personagens, com os autores. Ela própria escrevia. Passagens e histórias que nunca li.

Admirava-a.
Não sabia como chegar-lhe, se pelas histórias e fantasias, se por pedaços de conversas banais, mas a verdade é que a admirava a ela, às suas coisas, aos seus personagens e aos livros que trazia no regaço.

Um dia sentei-me ao seu lado e lancei-lhe um olhar curioso. Que livro? Que história? Que passagem coloriu? Toda a curiosidade posta num olhar de soslaio. A Catarina, chamava-se Catarina, estendeu-mo, fez questão que o levasse para casa e disse “é a minha personagem”.

Quando cheguei ao quarto, compus as almofadas e deitei-me para ler. Tirei o livro da mochila e exclamei em jeito de resposta ao meu olhar curioso: “É Julieta!”. Era Julieta, de facto. Julieta e Romeu presos numa varanda de amor. E comecei a ler, até chegar à primeira passagem colorida:

Julieta. – Tu sabes que a máscara da noite vela o meu rosto, pois, se assim não fosse, verias um rubor virginal tingir-me as faces, pelo que me ouviste pronunciar à pouco. Bem quisera eu guardar as conveniências e negar o que disse; mas adeus conveniências! Tu amas-me? Eu sei que vais dizer que sim, e acreditarei na tua palavra; mas, se jurasses, podias trair o juramento; dizem que Júpiter se ri dos perjúrios dos amantes. Oh, querido Romeu! Se gostas de mim, dize-mo lealmente; mas, se pensas que fui muito fácil de conquistar, franzirei as sobrancelhas, serei cruel e dir-te-ei: “Não!”, para te dar ensejo a que me faças a corte. Doutro modo nem por todo o mundo o farei. A verdade, belo Montecchio, é que estou apaixonada, e por isso talvez julgues leviana a minha conduta; mas acredita, meu senhor, que me hei-de mostrar mais fiel do que aquelas que sabem melhor afectar reserva. Confesso que teria sido mais reservada se tu não tivesses surpreendido há pouco a confissão apaixonada do meu amor. Perdoa-me, pois, e não atribuas a um amor leviano esta fraqueza que a noite escura te permitiu descobrir.

Na margem, a cor, ela escrevera “Vês aquele bosque? Anda. Fecha os olhos e vira-te para essa árvore. Recorda quantos momentos prazerosos conseguires e a seguir segue o rumo da estrada ou o rumo do bosque. Vou levar aquela capa vermelha, tenho a certeza que vai chover. Se me procurares entre o verde e as folhas, estarei de vermelho. Tentarei erguer uma varanda só para o momento em que te vir chegar. E prometo-te que não estarei escondida, em alguma gruta ou atrás de alguma pedra, estarei sempre perto, no caminho do bosque. Mas se escolheres o caminho da estrada, segue as linhas que te levarão a uma casa qualquer. Não olhes para o bosque, não vislumbrarás nem vermelho, nem varanda – esconder-me-ei; no verão, entre as cerejas. Vês aquele bosque? Anda. Conta. Corre. Atrás.”

Julieta.

sábado, fevereiro 03, 2007

Vermelha

16 anos. Não tinha mais do que isso. Média e loura. Cara de menina. Sorriso tímido e olhos grandes. Nos sapatos verdes trazia uma flor de feltro, vermelha. Falou pouco, e as poucas palavras que lhe ouvi soaram baixinho, baixinho...

17 anos, no máximo.

Cruzou aquela porta grande, numa noite igual a todas as outras. A noite e as outras. Acompanhada da mãe e irmã. Passou os olhos mas foi a mãe quem decididamente escolheu um conjunto para ela. Só até a irmã mais nova - 9 anos, no máximo - lhe mostrar o corpete de que a irmã gostara. Passei-lhe decididamente duas cruzetas para a mão e incentivei-a a que experimentasse. Ela acedeu, pouco depois a mãe foi espreitar.

- Fica-te tão bem, filha. Gostas mais desta parte de baixo ou desta?
- A Jú sabe que não gosto assim.
- Então, vai esta filha?
- Sim, Jú.

Entretanto chegou o pai - "olha o teu pai também quer ver o que comprámos", dizia a mãe, sorridente e entusiasmada. E o pai entrou, curioso e espectante, acabando por aprovar, entusiasmado, a escolha.

Senti-a apagar-se de novo. Ela não pertencia ali. Àquele entusiasmo, àquela tentativa de lhe trazer alguma compensação, àquele ânimo e àquela família que insistentemente lhe chamava de filha mas a quem ela decididamente decidiu tratar pelo nome.

Cruzou novamente a porta, alheia, desligada, e nos sapatos verdes levou a sua flor de feltro, vermelha.

quinta-feira, fevereiro 01, 2007

A Página

A página não é a mesma. Mudaram o papel e não me avisaram. Está rijo, o papel; e não absorve a tinta.

As palavras são como aguarelas e a mão que desiludidamente tenta, é outra.

O lugar, este lugar é agora vazio, escuro, sozinho, calado. Tão calado que ouvi os meus próprios passos, quando timidamente entrei.

Já não existem referências, perderam-se os laços; agora tudo é solto, tudo é livre, tudo paira como uma gota de água inesperada que ao cair prolonga a pintura na tela, uma suave e desiludida aguarela.

Deixei a promessa de que um dia voltava, sem aviso, mas que voltava; na verdade sempre pensei que não voltaria mais. Mas aqui estou, de novo, no mesmo lugar que já não é o mesmo.

A página não é a mesma.

E a mão que desiludidamente tenta, é certamente outra.

strayer university